domingo, 5 de outubro de 2025

Coisa de Rico

(âmbar do báltico sobre coisa de rico)


Entudo. Fui afetado de muitas maneiras pela leitura de “Coisa de Rico”, do Michel Alcoforado. Em primeiro lugar, a leitura chegou em um momento em que tem sido difícil que algo me mobilize esteticamente. Tenho achado a arte que chegou a mim recentemente (peças, filmes, livros, exposições) meio insossa. E foi com uma gratíssima surpresa que pude ler um livro agradável, instigante, divertido e que me fez pensar sobre a vida e as coisas. É bom gostar de algo, sentir que a arte pode alguma coisa em nós.

Em dado momento, me perguntei se essa atitude blasé sobre as coisas não seria talvez um problema meu. Não é tanto o mundo que está ruim, sou eu que não consigo captá-lo. O tédio talvez seja uma coisa de rico.

Se podemos viajar a Berlim, se conseguimos ter acesso às mais belas exposições de arte em Praga, se acessamos homens lindos nas saunas de Montreal, e, por fim, se apreciamos um café espresso preparado a partir de grãos colhidos nos solos vulcânicos de Cabo Verde e que nos são vendidos numa loja quase secreta nas ruas de Lisboa, talvez fique difícil que a vida nos surpreenda.

É que sou rico. Fiz as contas, olhei o quadro de renda familiar e os percentis. Sou 1%. O tabu sobre dinheiro é tão grande no Brasil que talvez essa informação me iniba de publicar esse texto. Posso ser cancelado. Falo muita merda, erro o tom, dirijo a comunicação como quem pilota um carro em alta velocidade. Sou ariano, e não tenho carteira de motorista.

Certa vez, almocei com dois colegas de trabalho, também ricos. Fui falar alguma coisa e comecei com “Então, porque a gente que é rico (...)”, ao que fui imediatamente desencorajado e interrompido, “Não, não, a gente não é rico, não. Rico é quem tem patrimônio, a gente só tem renda.” Retomo: “Ah, mas pelo nosso salário, a gente não se preocupa muito com grana, a gente consegue fazer o que a gente quer.”, ao que ele retruca: “Mas rico é quem não precisa trabalhar, a gente tem que trabalhar pra ter esse dinheiro.”

Lembrei desse diálogo assim que terminei de ler o Alcoforado. Ninguém é rico, rico é sempre o outro. Eu nunca conheci um executivo. Uma vez, ainda jovem, me dei conta de que ninguém se afirma como executivo: esse termo serve sempre a uma heterodeterminação. Ser executivo talvez seja um modo de ser rico.

Mas fiquei um tempo na cabeça com essa questão de “fazer o que a gente quer”, sem se preocupar com grana. Se não tenho problemas com dinheiro, se sou, por assim dizer, “um realizado”, talvez eu não seja rico.

É que meus sonhos são de pobre. Eu não quero um iate, não quero uma viagem de jatinho, não quero luxo, ostentação, nada disso. Quero silêncio, paz, quero estar em um restaurante onde não haja pessoas vendo vídeos do TikTok em volume alto.

É que talvez então, novamente, eu seja rico. Talvez, em mim, a operação da diferença (nos termos do Alcoforado), se dê não por uma lógica do dinheiro novo, mas do dinheiro velho. Não estaríamos aqui falando de um tempo transformador, mas de um tempo legitimador. Eu não tive um ponto de virada, não apostei tudo. Sou assim como que desde sempre. O tempo, o tempo rei, fez de mim o que sou.

O problema é que isso não é verdade, e mais uma vez, vejo a riqueza me escapar pelos dedos. Tenho sonhos de dinheiro velho, ajo como quem sempre teve, vivo como quem herdará, mas sob as camadas reluzentes da cebola de ouro e caramelo, habita em mim o oco da verdade, a verdade verdadeira dos fatos, que é a de que sou um pequeno burguês, um funcionário público num bom cargo, cujos pais apostaram na educação como saída para um vida média média, a infância num bairro do subúrbio, um condomínio de classe média baixa, a introjeção de certos valores de uma elite cultural que advém desde cedo dos bons colégios e de uma aposta na cultura como força motriz de transformação da vida.

No fundo mesmo, acho que sinto um pouco como o Alcoforado. Nosso patamar de renda nos dá uma certa capacidade de circular pela riqueza. A ele, evidentemente mais, posto que investiu nisso como um projeto de vida.

Mas é até com uma certa dose de descontentamento que me vejo espelhar nele: Alcoforado, ao falar da riqueza, projeta sobre si uma superioridade moral.

Não sou rico, mas posso brincar de ser rico, então, finjo que sou rico, e finjo tão a sério que quase me confundo com os ricos mesmo, os ricos de verdade, mas de fato não sou rico, e se, em algum momento, pensei de ser rico, rico mesmo (e olha que quase fiquei rico, de tanto brincar de ser rico), penso que é melhor não, porque os ricos, ah, olha os ricos, que pena dos ricos, coitado dos ricos, eles só são ricos, não são como nós, os intelectuais, então vamos aqui brincar de ser ricos, fingir ser ricos, e vamos todos rir na cara dos ricos.

Existe uma coisa linda na antropologia que é a de pesquisar o campo e, ao fazê-lo, imiscuir-se nele: em algum momento, você também é o campo. Mas ao tecer essas narrativas, ao expor as cenas, ao manejar a si mesmo no campo, não sei, parece mesmo não ter jeito: todo antropólogo tem dentro de si uma superioridade moral.

Sei que a antropologia tem tensionado isso, e gastado anos de sua produção científica recente pensando os modos não violentos de abordar o campo e de se colocar nele, mas parece que a petulância está impregnada nesses profissionais como uma gosma, algo viscoso, difícil de tirar da pele. Todos os dias agradeço por não ser antropólogo, por não ter potencializado em mim as características que vão nessa direção. (meu deus, eu não vou publicar esse texto nunca).

É muito bom não ser rico, eu prefiro ser intelectual (realidade: não sou nem uma coisa nem outra; brinco de ser ambos).

Pensando aqui também nessa dimensão do brincar. Se tudo é performance, não podemos assumir o lado lúdico de performar e fazer de tudo uma brincadeira? Se a vida é um jogo, não fica mais legal se, de fato, jogarmos?

Jogo, brincadeira, penso também no corpo – que surge numa das sacadas mais geniais de todo o livro (não vou falar dos peitos da patricinha divorciada).

Nunca quis ter um corpo superlativo. Sempre privilegiei tônus e flexibilidade em detrimento de força e hipertrofia. Agrada-me mais a calistenia que a musculação, prefiro o treino funcional aos aparelhos de academia. Até a leitura desse livro eu nunca tinha compreendido que esse meu gosto era tão diretamente informado por marcadores de classe e modos de performar a riqueza / operar a diferença.

É só que eu penso na maior parte das vezes como dinheiro velho. E o dinheiro velho quer um corpo mais próximo do “natural” (aspas aspas aspas quando se usa o termo “natural” em qualquer discussão em antropologia) do que um corpo fabricado, produzido.

É bem óbvio que parte significativa dos nossos gostos é construída em cima dessas performatividades, mas por vezes a gente simplesmente não se dá conta. Fui surpreendido dessa vez. Mesmo a gente que é o falso dinheiro velho se surpreende com as coisas da vida.

Por fim, um detalhe não menos importante, meu e do Alcoforado.

Somos negros.

Ele não aborda isso em nenhum momento do seu livro. Não sei se no meio de tanta graça, de tanta fala jocosa, seria possível abordar um assunto mais delicado.

E também é sempre mais fácil não falar de si mesmo (a antropologia fala dos outros para calar sobre si – ser antropólogo é a revanche de quem sofreu bullying na escola).

O direito diz que o silêncio não pode ser interpretado, mas a internet está sempre falando sobre o silêncio ensurdecedor da Anitta e de outras personalidades, quando algo é percebido como importante e não está sendo comentado.

Se Alcoforado não falou nada sobre cor e raça, também deixo aqui o carimbo do meu silêncio.

O silêncio é uma virtude. Inclusive o silêncio escrito. Falo merda, escrevo merda, nem sempre banco (tenho bancado menos à medida que envelheço, sigo em direção a um caminho de vulnerabilidade e de fragilidade, morro de medo ser cancelado, quero ser amado, isso basta, não preciso de muita coisa, vade retro churrascarias de Miami e humor antropológico).

Esse texto se destruirá em menos de 24 horas. Negarei todos os prints, e, no campo jurídico, serão tomadas as medidas cabíveis.

Das medidas cabíveis, o que cabe, o descabido. Transito.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

N\ ovo


Termino de ler o livro da Leda Maria Martins, “Performances do tempo espiralar”, e tento escolher um caminho para escrever algo. É difícil, todo texto é também uma encruzilhada.

As encruzilhadas não são nós. São aberturas, possibilidades de caminhos: elas são devires.

Portanto, todo ato de escrita carrega consigo a possibilidade também do que não se escreveu. Tudo o que é, e tudo que vem sendo, carrega consigo a possibilidade do que também poderia ter sido.

Certa vez li um texto do José Gil, chamado “As pequenas percepções”, que discutia um pouco sobre a apreciação estética nas artes visuais – percepção, sensação, experiência etc. Uma das frases que mais me marcou nesse texto foi esta: “A atmosfera é infra-semiótica.”.

Eu estava cursando o primeiro período da faculdade de psicologia, e a ideia de uma atmosfera infra-semiótica me atingiu em cheio. Tudo o que há no mundo está carregado de partículas cujo sentido não está dado – são, portanto, infra-semióticas. São as consciências das pessoas que acionam ou agenciam essas partículas e as dotam de sentido. Para a fenomenologia, que é um certo modo de construir a filosofia a partir do que se nos dá a ver (ou seja, do fenômeno), toda consciência é sempre consciência de algo. E esse algo seria o que está nessa atmosfera: partículas soltas, livres, desorganizadas, aquém do sentido. É por esse viés que se desdobra aquela visão mais jovem-mística de que “o que vai acontecer já está acontecendo”. Ou seja, o que vai acontecer já está concebido em devir, já é potencialidade, já é coágulo de partículas infra-semióticas se imbricando mutuamente e erigindo desde agora a possibilidade de seu sentido futuro, à espera de uma consciência que lhe dê sentido e corpo.

Corpo.

Nos estudos que tenho feito (na faculdade, mas também nas leituras esparsas que cultivo aqui e ali), a ausência do corpo como locus de produção de sentido das coisas é a tônica geral. Fala-se de consciência como se ela fosse descorporificada, como se a intencionalidade para com os objetos e partículas infra-semióticas às quais se dará sentido fosse feita a partir de uma consciência que se estabelecesse como algo etéreo, desmaterializado, que não só pudesse existir de maneira alheia a esse corpo como fosse em tudo a ele superior.

Mas é no corpo que a consciência é. E no corpo o tempo bailarina.

Mas pode uma consciência bailar?

Se o tempo bailarina nos voltejos do corpo, como nos diz Leda Maria Martins, ele bailarina também nos voltejos da consciência.

É que, talvez, para dar ao corpo a centralidade epistêmica que se impõe no tempo (que bailarina?), devamos deixar de falar de uma consciência corporificada, e passar a falar de um corpo conscientificado.

Não é a consciência, portanto, que teria a propriedade de ter um corpo, do qual, supostamente, se locupletaria como aquilo que lhe permitisse experimentar as percepções e sensações dos objetos, para então poder submetê-las ao seu escrutínio e processamento. É o corpo, por sua vez, que carrega essa propriedade ontológica de ser. O corpo, então, uma vez sendo, é que teria na consciência uma de suas partes integrantes, que seria justamente aquela que lhe forneceria a possibilidade de dar sentido ao mundo experimentado.

É por essa razão que tenho questionado um certo clichê ainda muito presente de que “o corpo é a nossa casa” Quando dizemos isso, separamo-nos de nossa dimensão corpórea e dizemos que somos esse algo mental, etéreo, e que o corpo seria a casa onde essa mente habita. Acredito que o corpo não é “onde a gente mora”, o corpo é precisamente o que somos.

Reivindicar a centralidade epistêmica do corpo é um trabalho decolonial importante. É decolonial porque ele precisa romper com o dualismo cartesiano mente-corpo, que dá àquela um valor maior do que a este, e que justificou o projeto colonial ao ler a alteridade como “aqueles que sabem menos”, “aqueles que não têm alma” etc, e cujos corpos poderiam ser livremente dispostos e manejados pelos colonizadores. É importante porque abre margem para que emerjam outras narrativas e outras propostas éticas que haviam sido solapadas por esse projeto colonial.

E o corpo no tempo bailarina.

Essa dimensão da dança, do gesto, do movimento faz com que o corpo não seja só um agente da escrita (por meio das mãos que manuseiam canetas, teclados ou telas). Escrever é sempre um ato corporal, já sabíamos, mas Leda Maria Martins nos alerta para a dimensão de que o corpo também é onde se escreve – ou melhor, onde se inscreve o tempo.

O corpo-tela, como Leda nos diz, é a possibilidade de que o corpo seja o espaço por onde o tempo flui. O tempo existe, então, por meio do corpo. Se no corpo o tempo bailarina, isto o é somente porque o corpo funda o tempo, e o refunda a cada vez, à medida que a performance corporal evoca e atualiza uma certo modo de existência, um ethos.

Ora, se o corpo funda o tempo, e o tempo no corpo bailarina, a dança, no que traz de próprio do performer, e do que isso evoca do que já foi antes dançado, é a matéria mesma da existência.

O movimento, a dança, não é algo que se faz porque o corpo quer dançar. É a dança que cria o mundo – nos voltejos do corpo onde o tempo bailarina, onde o tempo se inscreve.

Causa-nos certa estranheza então porque se fala tão pouco de movimento, de dança, de corpo. Por que é que isto não se coloca na centralidade do pensamento sobre a vida? A quem interessa calar a potência do corpo como elemento fundador e atualizador do mundo, do tempo, da consciência?

Acho que há nisso tudo uma certa dificuldade de lidar com uma perspectiva não essencialista das coisas – a ideia de que o corpo não é algo, mas um vir-sendo.

Nesse ponto, acho que discordo um pouco da autora, que parece defender uma perspectiva essencialista do corpo – de que o mesmo ginga (nas encruzilhadas e fora delas) como que animado por uma força vital, um axé, uma ancestralidade.

Penso, ao revés, que não há lá no corpo que performa seus movimentos de um já-vindo e de um vir-a-ser, algo como uma origem, um começo.

O corpo é um palimpsesto – assim como as cidades. A despeito dos esforços para estabelecer um marco fundador, não há um original a que se retornar. Mesmo as cidades, uma vez fundadas, se erigem em um espaço que foi outra coisa, restando nelas sempre uma dimensão que permanece.

Portanto, cada cidade (assim como cada corpo) se atualiza no gesto e no concreto, na performance e no urbanismo, não como quem evoca algo que partiu e já não está mais lá, mas sabendo que ambos são mesmo constituídos disso que já foi, ao mesmo tempo que constituintes de um vir-a-ser (e mesmo também de um já-sido, e nisso reside a espiralidade do tempo).

Mas essa constituição não rememora, evoca ou convoca uma anima ancestral – é o fluxo do movimento que se dobra e se desdobra sobre si mesmo, em circunvoluções que não vão apontar para uma essência, ou algo que, enfim, seja.

Essa constituição do corpo (e também das cidades) é mesmo a de um palimpsesto, em que as camadas se acumulam umas sobre as outras, sem que haja um primeiro, uma origem.

Nosso corpo se compõe de células de outros corpos, do que comemos, da poeira que respiramos junto com o oxigênio que nos serve e o nitrogênio que se nos passa.

Somos cicatrizes, tatuagens, memória de estalos, dentes quebrados, alongamentos, tensões, traumas.

Isto que somos faz, pensa, existe. Evoca sem copiar, cria sem definir – ginga na encruzilhada e instaura o tempo como tensão. Mas só é porque se move. E no que se move, dá sentido ao mundo, criando-o a partir de suas infrasemioticidades, de seus quase-seres.

É o movimento mesmo essa origem e esse destino. E que tinge o mundo, de cores e de potências, quando acontece como presença.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Dias Perfeitos - um libelo existencialista


“Dias Perfeitos” é um filme lindo. Não há outra palavra para descrevê-lo. A beleza está justamente na proposta de ser um filme singelo, que retrata os acontecimentos do cotidiano de um limpador de banheiros públicos em uma das maiores megalópoles do planeta.

Não há uma grande reviravolta, um grande acontecimento. O filme não se estrutura em cima de uma morte, um grande amor, uma separação repentina. É uma história sobre o encanto mesmo da vida, de encontrar a beleza das coisas no dia-a-dia. Penso se tratar de um libelo existencialista: a preocupação com a verdade (e com a beleza) das coisas do mundo: um retorno às coisas mesmas.

Um de seus traços fundamentais é a presença integral do protagonista nas cenas cotidianas em que ele se coloca. O protagonista se implica em tudo o que faz. Ele está ali, de verdade, na inteireza do aqui-agora, seja limpando banheiros, conversando com seus funcionários, ou organizando suas fotos. Sua atenção está sempre direcionada ao presente, ao que ele se dedica em fazer.

A presença e a atenção são algo que parece termos perdido nas sucessivas revoluções digitais a que fomos expostos. Estamos conversando com alguém olhando o celular, lavando louça ouvindo podcast, curtindo uma festa olhando, pelo instagram, a festa em que o outro amigo está, e que perdemos. Parece que não estamos em lugar algum nunca, e estamos também em todos os lugares ao mesmo tempo. Nossa presença fragmentada no mundo não é uma novidade para ninguém, mas o filme escancara isso de uma forma que nos faz pensar: “o que fazemos da nossa própria vida, afinal?” É bonito ver alguém que está de fato onde está, e essa reflexão nos toma de assalto, nos fazendo olhar, em retorno, para nossas próprias vidas.

Outro ponto de interesse: a materialidade das coisas. Vivemos em um mundo em que parece estar tudo nas nuvens: tudo é digital, online, guardado em repositórios obscuros que nos fazem apenas acessar, e não de fato possuir aquilo que, na verdade, nos pertence. As fotos impressas que ele guarda e data em sua própria casa nos parece saudosista, mas as fitas k7 soam quase folclóricas. Parece besta guardar essas coisas quando há uma ética e uma estética minimalista que teimam em reger o mundo, dizendo que não precisamos de nada disso, e que o mundo em breve se torna todo imaterial. Mas, a contrapelo desse projeto (que filme bom!), o protagonista se vê todos os dias limpando banheiros. Todos os dias (ou quase) as pessoas cagam. Enquanto formos humanos, demasiado humanos, não haverá o cocô virtual. É real, o mundo real é feito de matéria, de coisas físicas, com densidade, palpáveis, que terão de ser processadas sob a forma de trabalho por outros seres humanos (e eventualmente não-humanos). Na pandemia, ficou nítida essa percepção. Limpar banheiros é um trabalho essencial, e todo o maquinário digital quer nos fazer crer que vamos resolver nossas vidas com Netflix e drives compartilhados (que, creiam: dependem de telas, teclados, chips, e muita matéria para existir; o virtual só tem condição e possibilidade de existência na fisicalidade mesma do mundo).

E aí, vemos que não é besta guardar fitas k7. Ou fotografias. Há quem guarde livros, quem junte copinhos de cachaça, quem esconda, nos seus arquivos, cartas de amor. A materialidade do que guardamos é nosso rastro de presença no mundo. É evidente que ponderamos o volume desse rastro em oposição à disponibilidade de espaço físico e da produção de coisas. Vivemos em apartamentos cada vez menores, em um mundo com capacidade limitada de recursos naturais. Mas é importante lembrar que existimos também por meio das nossas coisas. As nossas coisas, mais do que isso, as nossas coisinhas, é que dão ao mundo a notícia de nossa existência.

Mas não só elas: também nossas relações povoam o mundo. E essas relações se dão no território. Junto à ideia do minimalismo, advém também a idéia de uma desterritorialização. O hype é ser de lugar nenhum. Mas, para a maioria de nós, o mundo habitado é um espaço pequeno. Costuma se resumir a uma única cidade, e dentro dela, a um pequeno conjunto de bairros: casa, trabalho, estudos. Nossa circulação no diminuto território que habitamos também constitui esse território. Estamos no território, mas ele também se faz a partir da nossa presença. Por isso, são muito bonitas as cenas em que ele vai ao restaurante de sempre, e a dona sabe o pedido que ele costuma fazer. Ou quando ele vê sempre o mesmo mendigo, no mesmo lugar (até que o vê em outro, dando noção de um certo esfacelamento do mundo tal como o conhecemos). Mas a grande marca da relação com o território é o jogo-da-velha. Ali, Win Wenders retirou a presença do outro-que-interage para marcar justamente esse ponto: a relação com o território. O jogo-da-velha não é outra coisa senão isto: uma relação lúdica com nosso espaço de circulação, de vivência. A convivialidade, o civismo das relações cotidianas, passa por esse ato de reconhecer o outro, de saber que há algo da vida que se compartilha neste lugar.

Por último, o encanto. Komorebi, essa palavra japonesa que define o momento fugaz em que o sol cruza a copa das árvores e ilumina o mundo, dá o tom do filme. Há uma cena bem curta após os créditos que mostra esse conceito. São essas as cenas que o protagonista tenta reter nas fotografias que imprime. A capacidade de se encantar é algo que nos é paulatinamente roubada desde que saímos da infância. É um processo contínuo e que dura uma vida inteira, mas reversível, quando opomos a ele uma resistência sincera. Parte relevante de se encantar (ou de se apaixonar, ou de se surpreender com as coisas da vida etc) é querer se encantar. Todos os dias o mundo dá provas de sua imensa beleza, que se derrama nos komorebi, no pôr-do-sol, no barulho do vento. Todos os dias. O encanto é, existe e está, mas só para quem se dispõe a querê-lo.

Os dias são perfeitos, mesmo nas suas pequenas imperfeições, ou talvez justamente por causa delas. E escoam, como num fluxo, em direção à morte (como alguns poderiam dizer), mas, sobretudo, em direção aos novos e futuros encantos. O encanto do mundo se auto-engendra.

A cena final, não preciso dizer, é digna de todos os prêmios de atuação que poderiam ser concedidos a alguém. E a trilha sonora nos embala para muitos dias depois de termos visto essa obra-prima de Win Wenders.

“Dias Perfeitos” é um filme denso, profundo, e ao mesmo tempo leve, sem cair em nenhuma auto-ajuda barata. Ele nos entrega um manifesto, não do bem-viver, mas da liberdade e da beleza do que somos capazes de fazer de nossas próprias vidas, a partir dos nossos desejos e dos recursos de que dispomos.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Pobre Criaturas – uma saga epistemológica

 


(essa análise é cheia de spoilers, é só para quem já viu o filme)

 

Terminei de assistir a “Pobres Criaturas” com estupefação. Yorgos Lanthimos parece ter atingido o ápice da sua carreira com esse filme que invoca o realismo mágico e traz à cena, com naturalidade, criaturas como o cão-galinha, Godwin, e Bella Baxter.

À primeira vista, o filme parece uma crítica tanto ao patriarcado quanto à sociedade ocidental. Há críticas explícitas ao modo de funcionamento da monogamia, à posse dos homens sobre as mulheres, ao uso do dinheiro, à dissimulação dos desconfortos (“por que devo manter na boca essa comida de que não gostei?”) e a uma miríade de códigos e de normas que regem a vida social que, por mais lógico que fosse refutá-los, nós permanecemos reproduzindo.

Isso por si só já seria uma bom trabalho. Mas até aí não teríamos grande novidade. A pauta feminista aparece com força nas telas (é só vermos o estrondoso sucesso de “Barbie” nos cinemas) e a crítica de costumes não é em si mesmo uma novidade (de “O Pequeno Príncipe” a “Os Simpsons” há uma vasta gama de arte produzida que visa a mostrar o quão ridículo é o mundo e o quanto compactuamos com esse ridículo em nossos gestos e atos).

Contudo, num filme longo como “Pobres criaturas”, ficamos tentando imaginar ali outras coisas: outros discursos, narrativas, possibilidades. Questionamos o óbvio, o dado, e partimos para a alegoria: o que está sendo dito de verdade por detrás de tudo o que vemos?

Saí do filme com duas frases na cabeça. A primeira delas, a que me levou a sentir que havia mais do que o inicialmente fornecido, foi a frase de Bella Baxter no navio, para seu companheiro de aventuras (o amante trágico Duncan Wedderburn), quando ela tentava ler um livro no convés: “You’re in my sun.”

“Você está no meu sol.” Essa não é uma frase original. Trata-se da célebre frase dita por Diógenes, o filósofo grego que morava em um barril, e que foi o maior representante do pensamento conhecido como cinismo. O cinismo é uma corrente de pensamento que engloba um certo descaso pelo poder e pelos luxos da vida humana. Junto a esse despojamento, vêm os ideais de liberdade, autossuficiência, não-sujeição, e denúncia. Diógenes ficou tão famoso por suas ideias que Alexandre, o Grande, ao saber de sua genialidade (e também de sua pobreza) foi procurá-lo. Colocando-se em frente ao barril onde Diógenes morava, Alexandre lhe pergunta: “O que é que eu posso fazer por você?”, ao que o filósofo de pronto lhe responde: “Você poderia sair da minha frente? Está tapando o meu sol.”

Esta citação de Bella Baxter não é acidental. Antes de tudo, temos de lembrar que Yorgos Lanthimos é grego. A filosofia, a mitologia e a cultura do povo helênico estão muito à mão para o diretor: são algo cuja evocação e manejo parecem se dar com naturalidade. Além disso, no mesmo contexto, Bella Baxter entabula um diálogo com Harry Astley, que, entre outras coisas diz: “Eu sou um cínico. Deixe de lado toda a filosofia, e não se apegue a verdades que já estão colocadas. Refute o comunismo, o socialismo, o capitalismo.”. Ou seja, a referência ao cinismo, com Harry Astley, que se conecta com a frase “You’re in my sun”, é explícita.

Ora, se a verdade, para os cínicos, não está em nenhuma dessas coisas, onde então ela poderá estar? Bella Baxter vive a vida produzindo suas próprias verdades através das vivências. Ela se dá a todo tipo de experiência, não recusa a vida em nenhum momento. É livre, quer viver. O mundo pelos olhos de Bella começa em preto-e-branco e com a câmera olho-de-peixe, que é mais ou menos como o bebê enxerga. À medida que a protagonista cresce na trama, se liberta, descobre o corpo, e vive a vida, as imagens se preenchem de cor, inicialmente com normalidade, mas chegando ao ponto de haver cores saturadas em determinados momentos.

Esse mundo de cores de Bella Baxter acontece quando cabeça e corpo passam a convergir. Na verdade, penso que é aqui, nesta divisão corpo-cabeça, que está a chave geral para a compreensão da obra.

A personagem de Bella Baxter realiza desejos individuais e coletivos. Individualmente, ela tem a cabeça de uma criança e o corpo de um adulto. Então, Bella Baxter se encanta como uma criança, ao mesmo tempo que goza como um adulto. Se no curso de nossas vidas, trocamos ao longo do tempo a capacidade de se encantar pela capacidade de gozar, nós nos realizamos na tela com essa pessoa que, a um só tempo, se encanta e goza.

Além disso, no plano coletivo, a existência de Bella Baxter realiza o desejo mais profundo da sociedade ocidental cartesiana de base iluminista: a separação do corpo e da mente.

Essa separação do corpo e da mente vivida pela personagem principal faz com que ela encarne em si esses ideais do projeto cartesiano: o conhecimento científico, o progresso e a verdade.

Antes da crítica mais forte (que apresentarei mais à frente), dois elementos sutis já começam a desmoronar o edifício da aventura cientificista. O primeiro deles é a forma sentimental com que tanto Godwin Baxter quanto Max McCandles – ambos doutos homens de ciência – se relacionam com Bella. Querem prendê-la. Têm por ela (o conhecimento) uma relação de posse e de domínio, mas antes de tudo a amam (não foram capazes de não amar, como se supunha num domínio da objetividade).

O segundo, ainda mais sutil, é o olhar aterrorizante (único em todo o filme), com que Bella olha para os bebês mortos ou famintos em Alexandria. Ela tem uma empatia e uma compaixão pelos bebês como não tem por mais nada. O sofrimento deles a mobiliza de maneira atroz. Parte disso pode ser explicado pelo cérebro de bebê/criança que ela possui: portanto, agiria de maneira empática com o que sua mente acredita ser. Mas serei um pouco mais ousado e formularei outra hipótese: o corpo também guarda uma memória, que não está em nenhum lugar localizável no cérebro. Dessa memória do corpo (retomada quando a protagonista acaricia sua própria cicatriz de gravidez), advém esse horror instantâneo aos bebês em sofrimento. Essa memória do corpo é também uma crítica sutil ao projeto cartesiano, que entende a cabeça como o lugar de pensar/sentir, e o corpo, por consequência, como uma parte menos nobre cuja principal função seria a de sustentar a cabeça que pensa e sente.

Entretanto, à parte essas duas críticas sutis, penso que é na estrutura mesmo do filme que o diretor coloca toda a sua zombaria em relação a esse projeto de construção da verdade em bases iluministas.

Nessa estrutura, Bella Baxter passeia por quatro cidades, além de uma navio. Ainda que pareçam uma aleatoriedade, são cidades que estão conectadas. Todas elas se colocaram em algum momento da história como um pólo difusor do conhecimento e da verdade.

Lisboa, a primeira delas, ainda aparece sob o prisma da câmera olho-de-peixe, mostrando a infância que é a o mesmo tempo a de Bella e a do projeto iluminista. Nessa cidade, há passeios, algum viço de juventude, mas paira no ar certa modorra. A protagonista resume, então, em uma única frase (a segunda frase mais impactante de todo o filme, depois de “You’re in my sun.”) todo o projeto da expansão colonial portuguesa nos séculos XV e XVI: “Em toda essa aventura, só encontrei açúcar e violência.”

É a partir de Lisboa, que ela entra no navio. A embarcação, com uma parada prevista em Atenas, não para na Grécia (o que pode ser interpretado como se o Ocidente não desse os devidos louros ao mundo helênico; lembrando sempre que o diretor é grego). Para, contudo, em Alexandria, onde, em vez de sua famosa biblioteca, encontra apenas bebês mortos. Ela desce as escadas até onde é possível, mas não chega a desembarcar. Volta, empobrecida, para o navio.

Depois, ela segue para Paris. Este é o local de onde emanam as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. E ela até encontra, mas a essa verdade se agrega a contraface da prostituição, do abuso corporal e até de alguma melancolia. Paris vibra o sonho, mas entrega a realidade.

Por fim, a viagem se acaba em Londres. Na terra do liberalismo econômico, o que se mostra à protagonista é exatamente a violência do projeto colonial inglês: uma violência, só que sem açúcar. Aqui ela vai encontrar o sadismo puro e simples, aliado a uma obsessão pelo território e pelo controle e domínio dos corpos. O liberalismo amargo da Inglaterra mostra sua face no trato servil que se dá aos empregados da mansão.

O filme acaba com a icônica tomada em que o marido daquela que esteve antes no corpo de Bella, Alfie Blessington, é transformado em cabra pela protagonista. Bella Baxter, por sua vez, se forma médica. Segue os passos de seu pai criador, Godwin Baxter, sem cair nem um milímetro longe da árvore.

O final sombrio de “Pobres Criaturas” nos faz ver que, a despeito de toda experiência vivida, mental e corporalmente, todo aprendizado, todo desmontar do teatro de costumes sobre o qual se erige a sociedade, e mesmo toda a sabedoria sobre suas origens, Bella Baxter perpetua a mesma lógica perversa que a produziu.

Casada, ou irmanada, àquela que lhe apresentou o socialismo (escolhendo por fim, uma corrente de pensamento, em oposição ao cinismo de Harry Astley), Bella Baxter nos mostra que mesmo todo o potencial crítico não foi capaz de transformá-la.

A força que move o mundo pelas correntes do pensamento científico ocidental é tão forte, que mesmo a crítica que se faça sobre ele é uma demonstração de sua força. O oprimido, mesmo aquele que viveu muitas experiências e que as tenha processado mentalmente e corporalmente, mesmo esse, continua querendo ser o opressor: desconta em outros as frustrações de sua própria vida.

Por isso é que este final nos é tão impactante. O maior produto da ciência de então – alguém que se encanta e goza e cujo corpo é separado da mente, se transmuta então em um produtor de ciência. De produto a produtor, todos os sinais também se invertem.

Feita a fusão do corpo e da mente – Bella Baxter se entendendo inteira nisto que é, a um só tempo não mais goza e também não mais se encanta. Sua face mais cruel e amarga, a que vimos no fim do filme, é um caminho melancólico percorrido em direção ao lado mais feral de nossa humanidade.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Caminhos para lidar com a inteligência artificial

Imagem criada por mim, com auxílio dos dispositivos tecnológicos - copyleft


Estivesse vivo, Walter Benjamin teria escrito um livro chamado “A linguagem na era de sua reprodutibilidade técnica”.

Já é um clichê dizer que a inteligência artificial chegou de roldão, e que vai mudar inequivocamente a forma como pensamos, trabalhamos e nos divertimos. Isto posto, a pergunta que urge fazermos, e que devemos tentar responder é: o que fazer?

Não é a primeira vez que o ser humano é superado, e olhar paras as experiências pregressas talvez nos ajude a pensar um pouco melhor na questão.

Na Revolução Industrial, vieram as máquinas, que conseguiam fazer muito mais do que um ser humano em termos de movimento, pensando em um processo produtivo. De certa forma, as máquinas chegam para substituir o braço humano, e a escala humana de produção foi superada. Uma coisa que era feita em dias, passou a ser feita em minutos. Uma máquina de fiar passou a coser uma camisa rapidamente, de forma que para produzir uma roupa, hoje, o parâmetro não é o quanto de tempo uma pessoa leva tecendo ou bordando, mas em quanto tempo uma máquina consegue fazê-lo.

É importante colocar aqui que as máquinas não substituíram de todo o trabalho do braço humano, que continuaram a ocupar os galpões das fábricas com sua força de trabalho. Na engenharia de produção, é comum que se fale sobre “o sistema homem-máquina”, que é a operação conjunta desses dois entes, em um mesmo processo ou atividade, que atuam de forma integrada no processo produtivo.

Como diria Marx, o trabalhador ficou alienado de seu processo produtivo, mas não parou de trabalhar; ao menos não na Revolução Industrial. Com o tempo, o desemprego estrutural começou a afetar a população, que foi tendo seu emprego substituído pela máquinas e pelas tecnologias, em um processo que segue em curso até hoje nos processos de desmaterialização da economia e do avanço da indústria 4.0.

Diferente da Revolução Industrial, que propôs a superação do braço humano, nas artes, o que vimos foi a busca por uma superação do olho e, de certa maneira, das mãos.

Durante muito tempo, a pintura foi uma forma de apreensão da realidade. O artista olhava para algo (uma pessoa, uma paisagem) e o reproduzia na tela em branco. Seu valor era tão maior quanto mais fidedignamente ele conseguia reproduzir, na tela, a imagem observada.

Quando chega a fotografia (e também o cinema, que reproduz, na tela, os movimentos que a vida é capaz de gerar), as artes plásticas não morrem. E isso acontece por vários motivos.

O primeiro é que a fotografia da pintura não é uma pintura: ela segue sendo uma fotografia. E, este é o ponto que eu gostaria de chegar: a arte segue por outros caminhos.

Se até a era de sua reprodutibilidade técnica (eu não li o livro do Benjamin, ok? talvez eu devesse :P), o papel da pintura era muitas vezes o de representar a realidade, como se vê na grande quantidade de retratos e de paisagens pré-fotografia, ou, o de representar o belo, como nas pinturas religiosas do Renascimento, que se preocupavam com a forma humana, com as proporções adequadas na construção das cenas, com a simetria etc, etc, rapidamente as artes visuais encontram um outro código para si.

Agora que a realidade pode ser facilmente capturada com as lentes fotográficas, e, se nessas fotografias, somos capazes também de buscar e de construir o belo, são justamente essa beleza e essa realidade que entram em questão. Essa foi uma das razões pelas quais o século XX viu movimentos fortes de ruptura com a realidade (abstracionismo, surrealismo) e com a noção de beleza (minimalismo, pop art e, de certa forma, toda a arte contemporânea pós-Duchamps).

Essas foram as saídas que encontramos para continuarmos com a existência da arte. Falo aqui das artes visuais, mas a arte toda apresentou esta ruptura. Deixou de ter valor a reprodução fidedigna da realidade: o código que passa a vigorar é outro.

Na produção industrial, o que vemos é um processo de natureza semelhante, mas com suas especificidades próprias. Se a industrialização tornou tudo fácil de obter e produzir, o que fizemos foi mudar nossos parâmetros para querer e desejar outras coisas. Por isso, nunca esteve tão em alta entre nós o handcrafted, o artesanal, o feito à mão.

Somos capazes de produzir fermentos que fazem o pão crescer em meia hora, mas estamos dispostos a pagar mais pelo pão de fermentação lenta, que fica 48h ou mais curtindo suas leveduras. Temos uma miríade de insumos químicos agrícolas para produzir alimentos de forma rápida e com frutos mais “bonitos”, mas estamos dispostos a pagar mais caro pela alimentação orgânica, etc, etc.

Esses dois exemplos estão aí para mostrar que a humanidade, em vez de competir com a tecnologia, é capaz de promover uma espécie de retorno à escala humana caso queira, estando disposta a pagar por isso.

Trazendo essa discussão para o caso da Inteligência artificial, que possui uma série de interfaces mas que se materializa mais efetivamente através do chatGPT, o que penso é que encontraremos um caminho.

Esse caminho não passará pela competição com a máquina, nos critérios de eficácia e precisão que ela apresenta, porque certamente perderemos.

Ao contrário, acho que o nosso modo de lidar com a inteligência artificial passa pela valorização do desvio.

Ainda que o Chat GPT seja capaz de fazer corpo mole e de mentir deliberadamente caso não saiba responder a algum questionamento, penso que é mesmo na dimensão mais humana do desvio que nos sobrepujaremos à inteligência artificial, com destaque para duas de suas faces: o erro e o fracasso.

O erro é a marca humana na trama da técnica. Só o ser humano é capaz de produzir o erro (tomado aqui como aquele que ocorre de maneira não-intencional). Na numismática, cada moeda corrente vale exatamente o seu preço de face. As que possuem erros de cunhagem, contudo, alcançam valores muito mais altos.

O futuro humano será um grande catálogo de produtos com pequenos defeitos: a avaria como garantidora da mão e do pensamento humano, as imperfeições textuais, a pontuação, desordenada, com, pequenos erros, letras em dupplicidade, e o que mais o ser humano for capaz de não atingir.

Nesse sentido, o acúmulo de erros se traduz como fracasso, e este vem a ser outra característica humana, demasiado humana.

Se a máquina não fracassará, é o sucesso do fracasso que será responsável por nos reconectar à nossa própria natureza, ao nosso próprio tamanho, à dimensão humana que já se perdeu há mais de um século com os arranha-céus e que agora se afunda ainda mais com a possibilidade de que as máquinas falem como nós.

O fracasso como paradigma só faz sentido porque as máquinas não perdem e não fracassam (e, convenhamos, também não obtêm sucesso, uma vez que sucesso e fracasso são medidas subjetivas de adequação da realidade em função das expectativas que as máquinas, apesar de inteligentes, não são capazes de ter).

Essa dimensão do fracasso retoma um pouco a discussão que tivemos acima sobre a arte porque, da mesma forma que os parâmetros de pensamento e avaliação sobre as artes mudaram em função de sua reprodutibilidade técnica, também será necessário que mudemos a perspectiva sobre as funções positivas ou negativas do sucesso e do fracasso para colocar o ser humano novamente na vanguarda de si.

Dessa forma, o que faço aqui nesse texto é recuperar a noção de experiência do sujeito que parece ter se perdido na vida prática, mas sobre a qual há bastante tempo já se fala. Retomo, portanto, o belo ensaio de Jorge Larrosa Bondía, intitulado “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, no qual ele nos diz: “o que quero apontar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a experiência é impossível.”. No mesmo texto, Bondía também define o conceito de experiência: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.”

Curioso como o ensaio de Larrosa Bondía evoca um texto de Benjamin, que é o autor com o qual começamos esse nosso texto aqui. Quando digo que não li “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, penso que deveria tê-lo feito.

A um só tempo a experiência de não ter querido / podido / conseguido fazer essa leitura traz a mim algum grau de fracasso, e o fracasso é a argamassa com a qual construiremos o futuro. Isso pode ter me levado a erros conceituais também nessa construção textual, mas o erro é o que nos humaniza.

Por fim, o ChatGPT acirra em muita medida essa perda de experiência no mundo contemporâneo (que é o que nos faz, a um só tempo, valorizar o artesanal e reinventar a arte) ao ponto de nos questionarmos se se trata mesmo de uma diferença de grau ou de natureza em relação ao que já acontecia antes.

Entretanto, ainda que ele possa escrever por nós, ele jamais será capaz de ler por nós. O que devemos fazer, então, talvez seja isso: ler.

Vamos começar por Walter Benjamin, com “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Como devemos fazer isso? Ora, da maneira mais humana possível: de forma errática, desprogramada, intermitente, interrompida e inconclusiva.

Com sorte, fracassaremos.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Tár – Uma história sobre o século XX e o apocalipse do Ocidente


Antes de começarmos, é importante deixar claro: esse texto contém spoilers. Portanto, é só para quem já viu o filme.


Tár é uma obra audiovisual belíssima: um filme longo, estrelado de forma magistral pela experiente Cate Blanchett, e que por quase três horas prende o espectador à poltrona sem lançar mão de pirotecnias e efeitos especiais. O enredo é trivial, e aqueles que escrevem sinopses podem ter dificuldades em fazer crer que o filme seja interessante: trata-se da história de vida e de uma aparente crise de meia-idade de uma maestrina que rege uma das orquestras sinfônicas mais importantes da Europa. Até aí, nada demais. Mas Tár é uma obra aberta, e, como tudo aquilo que é bem produzido, possibilita chaves interpretativas que vão muito além do que parece estar sendo contado.

Dessa maneira, assim que saí do cinema, a leitura imediata que fiz (e que foi se apurando em conversas com amigos e amores num barzinho logo depois), é a de que Tár é um filme geopolítico, e seu principal mote é o declínio e o apocalipse do Ocidente, com foco no século XX.

O primeiro elemento que nos traz a essa leitura é a profusão de nacionalidades e de espaços que o filme abrange: China, floresta amazônica, Nova Iorque e Berlim são habitados e frequentados por personagens alemães, norte-americanos, palestinos e russos. Isto não só não é um detalhe, como é um dos principais elementos constitutivos do filme. Isto é especialmente importante se pensarmos na forma com a qual essas pessoas e esses lugares se relacionam.

A trama, portanto, faz com que cada um dos personagens (e também cada um dos lugares mencionados) evoque sua nacionalidade e atue de modo a performar as lutas geopolíticas que o século XX engendrou. O que temos então é uma espécie de teatro do mundo, onde cada um representa um papel cujo significado vai muito além da própria vida.

Lydia Tár é uma maestrina norte-americana e representa, no filme, os EUA. Ela tem uma origem da qual inicialmente pouco se sabe, e da qual ela aparenta ter vergonha. Posteriormente, ao final do filme, vemos que ela vem de uma família pobre, sem posses, tendo inclusive trocado de nome. Os EUA, assim como Lydia, encobertam o seu passado colonial.

A orquestra é o mundo. Formada por membros de diferentes países, cada um dos músicos toca um instrumento. O objetivo é criar uma sinfonia: ou seja, todos os instrumentos devem ser ouvidos sem que um tome o lugar do outro, e a obra final deve ser coesa e harmônica. A esta orquestra/mundo coube a regência de Tár/EUA. Cabe notar que apesar dos inúmeros ensaios, o público não assiste à orquestra quando o filme acaba. A leitura é a de que a regência dos EUA tentou e tentou, durante todo o século XX, mas não foi capaz de, a partir de sua batuta, fazer acontecer o grande “concerto das nações”.

Olga representa a Rússia. Ela chega à orquestra de maneira inesperada e, de maneira muito rápida, consegue arregimentar posições em meio aos músicos. Não mais que de repente, ela, em uma aliança com Tár (que remete à aliança Rússia-EUA na Segunda Guerra Mundial), consegue se estabelecer como a solista do espetáculo, e se torna a segunda pessoa mais poderosa da orquestra (como a Rússia, no contexto do século XX). Logo após essa divisão de poder entre Tár e Olga, a relação se deteriora também de maneira rápida, e essa aliança deixa de existir. Elas então brigam, mas não como qualquer briga: elas deixam de se falar. Em dado momento, as duas estão no mesmo carro, e sequer se encaram, em uma cena que nos remete de maneira muito imediata à Guerra Fria.

Berlim é o lugar onde tudo acontece. Espécie de epicentro do mundo ocidental no século XX, é lá que o “grande concerto das nações” se desenrola. A cidade de Berlim foi murada e dividida, após ter sido palco de duas grandes guerras na Europa no século XX. É lá que se dão os conflitos, as alianças, é ali que o tal “mundo ocidental” está o tempo inteiro em jogo. Não parece ser uma coincidência que Berlim tenha sido escolhida para ser o cenário do filme. É ali que se dá a aliança e o conflito entre Tár e Olga, e é lá que a orquestra/mundo deve mostrar o seu funcionamento coeso e harmônico, do qual só vimos ensaios.

Quem apresenta também esse “desconcerto do mundo” é a filha adotiva de Tár e Sharon, Petra, que é palestina. Ela encarna essa tensão entre Israel e Palestina, assumindo ora uma posição, ora outra. Assumindo o papel israelense, podemos observar que Petra é a única pessoa por quem Tár tem um amor incondicional. Inclusive Tár se desloca até a escola para proteger a menina e ameaçar quem bulir com ela. Essa relação de proteção incondicional é similar à relação que os EUA tem ao amar e proteger o estado de Israel. Por outro lado, a menina sofre esse bullying porque de fato é diferente de suas colegas de escola, que são brancas. Aqui ela assume realmente esse papel palestino, de alguém que não tem paz no seu próprio entorno. Por fim, a briga entre Sharon e Tár (quando Tár é impedida de ver a filha) está ali para nos mostrar que se trata mesmo de um território dividido e em conflito, e de que a tensão Israel/Palestina está longe de acabar.

Por falar em conflito, cabe recuperar a história do conservatório dirigido pela própria Lydia Tár. Ali, naquela cena hipercomplexa em que a maestrina dialoga com Max, um rapaz negro e LGBT, estão representadas as relações dos EUA com o seu próprio povo. Essa cena nos indica que Tár/EUA, ainda que superpoderosos no mundo externo, têm muita dificuldade de lidar com as próprias bases. Max rejeita e confronta o poder da maestrina, lançando mão de uma argumentação decolonial e se recusando a tocar uma peça de um compositor branco. O conflito dentro do conservatório é então isto: um país que não sabe lidar com o momento atual de seu povo, que possui demandas outras, diferentes daquelas nas quais o país foi forjado. Há então uma parte desse povo que se levanta e desafia o poder branco de Tár/EUA.

Portanto, o que temos é que Tár não consegue dar conta de sua orquestra nem de seu conservatório. Daí advém uma crise. Esta é a crise norte-americana, que não foi capaz de, no século XX, resolver suas questões internas nem de reger o mundo, o que acaba por colocar em xeque toda a concepção de mundo ocidental. Esta crise é potencializada pela morte de Krista, um crime do qual Tár é acusada e da qual efetivamente tem culpa, embora insista em negar sua participação. Os EUA participaram de inúmeras guerras ao longo do século XX (Vietnã, Afeganistão, Golfo). O tempo de hoje não permite mais escamotear certas coisas, de maneira que quem tem sangue nas mãos, mais dia menos dia, será julgado.

Nesse sentido, é curioso perceber a surdez e o zumbido de Tár. Inicialmente, não é algo que a assuste, mas essa sensação passa a se tornar mais frequente no curso do filme, inclusive atrapalhando os ensaios. Na verdade, simbolicamente, Tár está surda ao mundo: não consegue entender que Olga se desenvolveu como musicista com base no Youtube, não consegue ouvir as demandas de Max no conservatório, não dá ouvidos mesmo ao silêncio gritante de sua companheira. Perdida em sua fantasia de poder, Tár (assim como os EUA) não consegue ouvir que o mundo à sua volta está em constante transformação, e que demanda coisas que talvez ela já não seja capaz de prover.

Essa fantasia de poder vai sendo paulatinamente desconstruída até que Tár chega à China. Ali, a cena da maestrina no barco é emblemática: enquanto ela pergunta em um tom de chiste e de maneira bem colonizadora sobre o perigo dos jacarés dentro do rio no qual eles singram, o barqueiro responde, sério e com altivez, algo como: “Aqui há apenas os jacarés que Marlon Brando não matou.” Nesta cena, a mensagem passada para Tár é: “aqui você não é especial; nem você, nem o seu povo, e nem a sua cultura.”

Este desprestígio se aprofunda nas cenas finais. O que vemos é mais que o declínio, é mesmo o apocalipse dos EUA e da cultura ocidental. O século XXI emerge, e a China assume o protagonismo do mundo. Há um interesse ali por algo da cultura ocidental, mas este interesse está associado à reapropriação daqueles símbolos em outros termos.

As cenas finais, em que o palco do teatro do mundo é a China, e não mais Berlim, tem inclusive outra temporalidade. Todo o filme se passa num ritmo mais lento, mas as cenas finais são ultra rápidas, o que indica que o eixo do mundo muda não só em sua geografia, mas também em sua velocidade: é num outro ritmo que as coisas acontecem. Para alguém que inicia o filme dizendo que “controla o tempo”, certamente essa mudança de ritmo tem um significado e tanto.

Tár evidentemente não está preparada, de forma que o modo como a cultura ocidental passa a ser retratada naquele contexto é entendida por ela como um grande deboche. É então que, ali, na última cena, em que o público vestido de cosplay aplaude o espetáculo, temos verdadeiramente um gran finale.

O grande concerto das nações, regidos pelos EUA, jamais aconteceu. São as pessoas que passam a protagonizar a cena, a partir de suas próprias subjetividades, para performarem através do cosplay o que de fato elas querem ser. A utopia do poder é desconstruída, e o foco no público, em vez de nos artistas, mostra que a cultura é vista não mais como uma herança do que a humanidade foi capaz de produzir, mas apenas como mais uma ferramenta a ser utilizada na construção e na performance de si.

Este final, apocalíptico mas também apoteótico, nos pega a todos de surpresa. Ao ler essa resenha e nos depararmos com todos os aspectos geopolíticos envolvidos na trama, somos levados a pensar: “Que papel os EUA, e o Ocidente de maneira geral, estarão designados a desempenhar à medida que o século XXI avança?” Mas cabe aqui retomar a impressão imediata que, antes de qualquer análise, nos toma ao sair da sala de cinema, neste final que se nos apresenta como uma catástrofe: “De que serviu aquilo tudo? Toda essa história para, no final, isto?”

Esta impressão inicial, agora matizada pela leitura geopolítica, retorna ainda com mais força. Este retorno vem com uma sutil, mas necessária, variação: “De que serviu aquilo tudo? Toda essa História para, no final, isto?”

terça-feira, 25 de maio de 2021

Desigualdade vacinal


Tenho me sentido estranho e triste. A desigualdade vacinal tem me pegado de um jeito que nem sei bem onde. Tenho 34 anos e não tenho comorbidades. Costumo ser o mais jovem dos grupos que frequento, desde sempre acostumado a andar com os mais velhos. No meu convívio, sou rodeado por profissionais de saúde: médicas, psicólogas, fisioterapeutas. E também por profissionais da educação. Recentemente, tenho descoberto também que muitos dos que me cercam possuem comorbidades as quais, por razões óbvias associadas à privacidade e à discrição, quase sempre desconheço.

Gozo de muitos privilégios na vida, e penso que, de forma geral, tenho razoável consciência deles. Além de um emprego que me permite trabalhar em home office (ao menos por ora), dois deles são esses que já mencionei: ser jovem e sem comorbidades.

Sei também que a ordem de vacinação segue uma lógica: primeiro os mais vulneráveis, e também aqueles que cuidam. Não discordo dessa lógica: na verdade, acho bastante razoável que a ordem de vacinação siga esses princípios.

Tudo isto posto, retomo o início mesmo deste texto, e não tenho como negar que me sinto muito incomodado com esta desigualdade vacinal.

Sinto que estou em um mundo antigo. Vivo ainda em um mundo permeado pelo medo do contágio e da morte, enquanto vejo que ao meu lado as pessoas pouco a pouco recobram a esperança.

Já fui a encontros em que a maior parte das pessoas está vacinada, e vejo que elas fazem parte de um outro tempo histórico. Elas não têm medo do toque nem do ar que respiram. Eventualmente, elas se reúnem em lugares fechados e, quando surge vontade, se abraçam.

No mundo em que vivo, as pessoas ainda se encostam com muito medo, falam à distância, cumprimentam-se com os cotovelos, e têm muito medo de morrer.

Há algo de interessante e potente em ver que esse novo mundo já se desenha para muitas pessoas. Mas há também uma inveja dos que já não precisam lidar com os medos que lido, e que, de alguma forma, já conseguiram superar essa fase.

O sentimento da inveja é legítimo (como qualquer sentimento). Mas não gosto de ter de lidar com ele. Sinto que ele aprofunda minhas tristezas em um mundo já tão triste. Todos os dias acordo querendo tomar minha vacina, e sei que ainda vai demorar. Que, somadas às previsões iniciais já tardias, somar-se-ão ainda os atrasos e problemas logísticos derivados da incompetência e da má-fé. Espero a vacina como quem espera um favor de um país que parece não querer me fornecê-la. Espero a vacina, contra e apesar.

É bom ver a esperança, contudo. Mais gente vacinada é um terreno menos arriscado, sempre. Mas todos os dias as redes sociais me inundam de pessoas ostentando orgulhosas e sorridentes suas carteiras de vacinação. Fico feliz por elas, claro. E dou um aceno do lado de cá, desse mundo que ainda é cheio de medo e de raiva.

Que bom que elas cruzaram a fronteira: então é possível. Mas do lado de cá, nesse mundo em que estou, os dias se passam arrastados, lentos e, porque não, tristes. É preciso aprender a ficar submerso, já sabemos. Porém, mais do que isso, é preciso aprender a ficar submerso sozinho, vendo emergir com vida aqueles que amamos enquanto vivemos ainda o turbilhão, o risco, o medo, e fazendo não apenas o esforço de esperar, mas o de esperar pacientemente a nossa vez de emergir com vida para o novo mundo que virá.